30/05/2010

Compartilhamento Musical 22

Oi, gente!

Estou impressionado e quero compartilhar com vocês hoje a respeito dos castrati!

Desde o século IV d.C., a interpretação errônea das palavras do apóstolo Paulo, “...conservem-se as mulheres caladas nas igrejas, porque não lhes é permitido falar...” (1 Coríntios 14.34), baniu as mulheres da música sacra. Era comum, então, que meninos e falsetistas cantassem as vozes femininas (vide Compartilhamento Musical 1). Em 1668, o Papa Clemente IX decretou que mulher nenhuma poderia aprender música para trabalhar como cantora. Isso baniu as mulheres também dos teatros, nos estados papais.

Desde o fim do século XVII, é notável o número de garotos que, uma vez tendo seu talento musical identificado, eram submetidos à castração. Está registrado que, em Nápoles, eram castrados entre 3000 e 4000 garotos por ano, os quais eram “exportados” para diversos países. Muitas das famílias desses meninos viviam em pobreza e vislumbravam, nesse SACRIFÍCIO, uma oportunidade.

A voz de um garoto submetido ao procedimento de castração não desenvolvia como a de um homem em seu curso normal, devido à sua nova configuração hormonal. Os meninos, donos de uma voz especial, às vezes encontravam o caminho do estrelato. Entretanto, a verdade é que poucos de fato chegavam ao nível de Farinelli ou Caffarelli. Estes eram estrelas tratadas pelo público semelhantemente ao modo com que hoje tratariam Michael Jackson ou Madonna.

A preeminência dos castrati em relação às meninas tinha muito a ver com o fato de que um jovem garoto poderia ser submetido mais cedo a um treinamento musical pelo qual uma garota de mesmo talento teria de esperar até o fim de sua puberdade, quando sua voz estabilizasse. Isso dava ao castrato uma vantagem de uns 10 anos de treinamento. Além disso, um rapaz pode se submeter a um treinamento fisicamente mais rigoroso que o de uma menina. O resultado era uma “máquina de cantar” com agilidade vocal virstuosística e com o poder de fazer moças desmaiarem de emoção na execução de uma obra musical.

O envolvimento da Igreja Católica no fenômeno dos castrati sempre foi controverso. Em Roma e nos estados papais, a castração era proibida sob pena de morte, mas há notícias de que 32 papas ao longo dos séculos deleitaram-se com o canto dos castrati na Capela Sistina. Os castrati começaram a desaparecer no século XIX, no Romantismo, mas seu fim oficial veio do Papa Pio X em 1903, com seu “motu proprio, Tra le Sollecitudini”. O último castrato de quem se tem notícia foi Alessandro Moreschi (1858-1922), membro do coro da Capela Sistina. Ele foi também o único a realizar gravações. Entretanto, apesar de serem valiosas historicamente, elas apenas nos dão uma modesta amostra do que seria a voz dos célebres castrati. (No YouTube há trechos do canto de Moreschi, mas não vá pensar que era assim que soavam Farinelli e Caffarelli!)

Este misto de beleza artística com crueldade me deixou de cabelo em pé, sobretudo quando adquiri o último álbum de Cecilia Bartoli. Em SACRIFICIUM, Bartoli focaliza repertório composto para os castrati, ressaltando o terrível drama sofrido por milhares de meninos que foram “mutilados em nome da música”. O CD vem com um compêndio sobre os castrati em um livro com detalhes históricos interessantíssimos. Mas o que me impressiona é a dificuldade técnica das obras que foram escritas para este tipo de voz. Bartoli, obviamente uma mulher, esbanja uma técnica primorosa de tal forma, que faz parecer às vezes que a música é mais fácil de cantar do que realmente é, apesar de ela mesma dizer que nunca executou obras tão virtuosísticas. Outro trunfo de Bartoli foi ter convidado Il Giardino Armonico, a mesma orquestra com que gravou seu álbum Viva Vivaldi (vide Compartilhamento Musical 2), para acompanhá-la no projeto.

Hoje compartilho com vocês a primeira faixa do DVD SACRIFICIUM: uma obra do compositor napolitano Nicola Porpora, que também foi professor e empresário dos mais célebres castrati. Trata-se da ária Come nave in mezzo all’onde, da ópera Siface. Ouvindo Cecilia cantar, minha imaginação fica a “ver navios”, tentando compor na mente como soaria a voz daqueles músicos extraordinários.



Abraço,
Renato